DR / MAKA ANGOLA
Segue a baixo o teor da carta de Rafael Marques endereçada ao Presidente Angolano José Eduardo dos Santos.
Senhor presidente,
A improbabilidade de nos encontrarmos leva-me a tentar conversar consigo por
esta via. Espero que me responda. O tempo é de diálogo.
Apesar de ser um crítico acérrimo do seu modo de governação e do consequente
sofrimento da maioria do povo angolano, admiro-o pela forma estóica como mantém
o poder e compreendo muito bem a sua angústia perante a possibilidade de o
perder.
Escrevia
o Padre António Vieira: “Pulvis es, tu in pulverem
reverteris”: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó,
é o presente; em pó vos haveis de converter, é o futuro. É esse futuro que
tentais evitar a todo o custo e do qual resulta a angústia que menciono.
Durante
algum tempo da minha infância, nutria por si um sentimento de terror.
Sabia, nessa altura, quando o senhor presidente agendava uma saída da sua
residência oficial na estância balnear do Futungo de Belas. Nessas ocasiões,
por volta da meia-noite ou um pouco mais tarde, sentia a casa a tremer e a mãe,
alarmada, vinha retirar-me do quarto para o quintal. A guarda presidencial
transportava para a rua onde até hoje vive a mãe, em camião apropriado, um
tanque de guerra soviético. Essa monstruosidade manobrava então para
posicionar-se na estreita e curta travessa para a qual dava a parede dos dois
quartos da casa. A estrutura era tão pobre e os tijolos já corroídos pelo
salitre, por ser junto da praia, na Samba, que uns centímetros de desvio na
manobra do tanque seriam o adeus eterno da minha família. A saída do presidente
do palácio forçava-nos, então, a dormir no quintal até à retirada do tanque.
A minha infância ficou marcada por esse paquiderme de aço que, com um breve
gesto, poderia desfazer a nossa casa e família, mesmo sem querer.
Não
gostava de si por causa desse perigo de vida que corria sempre que o senhor
presidente saísse do seu palácio. Rezava para que não tivesse de sair de lá. Eu
frequentava a igreja, senhor.
Em 1992, tive o privilégio de, pela primeira vez, ir a uma festa sua de
aniversário, no Futungo de Belas. A minha expectativa era grande. Ia observar o
convívio entre os dirigentes do meu país. Quando o senhor se retirou da festa,
vi um ministro dar instruções para que um arranjo de lagostas fosse levado para
o carro dele, um general a desviar uma preciosa garrafa de whisky, governantes
e comensais a saquearem o que havia no banquete. Na altura, julguei tratar-se
de um acto de generosidade da sua parte. Mas saí do Futungo de Belas muito mal
impressionado com o tipo de indivíduos que o auxiliavam e continuam a auxiliar
na governação. Se nem sequer se coibiam de levar a comida e os beberetes do
palácio, como poderiam conter-se e gerir com probidade o património público?
Desde então, não mais tive ilusões sobre si ou os seus colaboradores.
Conto
apenas estes dois episódios não para recriminá-lo, mas como um desabafo de
alguém que, como milhões de cidadãos angolanos, tem mais experiências negativas
do que positivas com o seu exercício do poder.
Muitas vezes interrogo-me, com perplexidade, quando noto que o senhor
presidente se sente ofendido ou ameaçado com actos normais de descontentamento
de cidadãos: Quão ofendido ou descontente teria eu de me sentir para fazer
justiça ao que já sofri às mãos do seu regime?
Imagino o que passará pela cabeça de milhões de cidadãos, também
afectados. Só a livre expressão nos poderá libertar de perigo de os
recalcamentos se tornarem sentimentos de ódio, frustração e vingança.
O respeito que o senhor merece é o reflexo da forma como
respeita os seus governados e os seus interesses comuns. Já prescreve a
Terceira Lei de Newton, que o senhor presidente como engenheiro conhece: “Para
toda acção há sempre uma reacção oposta e de igual intensidade”.
Em 1999, quando o senhor presidente ordenou a minha detenção,
por se ter sentido ofendido com os meus escritos, passei a compreendê-lo
melhor: é um homem poderoso, mas inseguro. Apreciei o gesto do seu secretário
que me visitou para saber do meu estado de saúde e de espírito na cadeia.
Apesar dos horrores por que aí passei, guardei uma melhor recordação da minha
experiência por causa dessa visita. O então director da Penitenciária de Viana,
Francisco Ningosso, enviou-me um cartão de amizade à cela, para um encontro
debaixo de uma árvore que lá havia, e tivemos longas conversas. Esse diálogo
foi interessante. O meu privilégio, no entanto, foi ter documentado e reportado
sobre as violações dos direitos humanos na cadeia.
Desta vez, senhor presidente, não envie o seu secretário para
saber da saúde dos jovens. O procurador-geral da República, general João Maria
de Sousa, precipitou-se ao anunciar publicamente, enquanto zelador da
legalidade, que os jovens estariam a preparar um golpe de Estado contra si.
Desacreditou o que resta de seriedade deste órgão judicial. O general João
Maria de Sousa é muito mau. É péssimo a servi-lo. A descrença no sistema
judicial não contribui para a a sua segurança.
Veja
bem: o sistema judicial é o que o poderá proteger da barbárie se alguma vez a
situação política mudar.
O sistema judicial é a fina película que separa a civilização da selvajaria.
Não comprometa o sistema judicial. Não comprometa a civilização e o direito.
O senhor deveria ouvir o sussurro entre os operacionais dos
próprios serviços de inteligência, que lhe são leais. Acham que o
aproveitamento político-judicial dos relatórios de vigilância das actividades
dos activistas detidos, para tão grave acusação, é contraproducente.
Gostaria, senhor presidente, que considerasse o meu pedido para
ordenar a libertação incondicional dos seguintes cidadãos: Afonso Matias
“Mbanza Hamza”, Albano Bingobingo, Arante Kivuvu, Benedito Jeremias, Domingos
da Cruz,Fernando Tomás “Nicola Radical”, Hitler Jessia Chiconda “Samusuku”,
Inocêncio Brito “Drux”, José Hata “Cheik Hata”, Luaty Beirão, Nelson Dibango,
Nito Alves, Nuno Álvaro Dala, Osvaldo Caholo, Sedrick de Carvalho e o capitão
Zenóbio Zumba.
Seria
um acto de coragem política e de moralidade constitucional devolver os
referidos cidadãos à liberdade.
Como o mais alto magistrado da Nação, deve manter a reserva moral para corrigir
actos institucionais danosos para o Estado de direito e, sobretudo, para a
relação entre este e a sociedade em geral.
A soberania é a decisão da excepção, não é a conformidade burocrática.
A soberania é a afirmação de vontade de um povo através dos seus órgãos.
Senhor
presidente, surpreenda a nação. Surpreenda-nos pela positiva e será reconhecido
por isso.
Pelo seu gesto de estadista e de defensor da constituição, que bem lhe serve,
para além do meu modesto agradecimento, teria a honra de convidá-lo para um
almoço vegetariano. Tem a minha garantia de que sou um bom cozinheiro e bom
contador de estórias para entretê-lo ao almoço.
Senhor presidente, proteja-se com a ética da Constituição e
ouvindo os seus críticos, que são os que menos mal lhe desejam.
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